.Filósofo PAULO GHIRALDELLI JR, ex-aluno de OLGÁRIA MATOS, e seu artigo em que analisa o artigo dela. Vale a pena ler os dois. É expressão do pensamento de dois dos maiores intelectuais do Brasil. ..OLGÁRIA MATOS E A AURORA DOS CRIADORES
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Em uma fita italiana dos anos 70 há uma cena em que os alunos universitários estão discutindo sobre o que o professor deveria lhes ensinar. O velho professor chega e, vendo aquilo, se reúne com eles e passa a participar da discussão. Eles não chegam a consenso algum e terminam por devolver ao professor o comando da classe. O professor, então, retoma seu lugar junto à lousa e diante de todos, anuncia: ‘Estou aqui para ensinar a vocês a beleza de um verso de Petrarca’.
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É com essa historieta que a filósofa Olgária Matos termina, de maneira bela, o seu artigo “O crepúsculo dos sábios”, no qual faz uma crítica ao que ela entende que está vigente na universidade brasileira atual. Sua crítica se inicia com a denúncia de que esta universidade que temos é apática, perdeu seu brilho e está cedendo à idéia de produção de intelectuais cada vez mais especializados. Há antes técnicos que sábios, no modelo atual. Ela não diz, mas eu digo, estaríamos diante do professor como o homem moderno de Weber: “especialista sem inteligência, hedonista sem coração”. .
A denúncia me parece, ao menos em boa parte, correta. Todavia, na hora que ela, Olgária, passa às causas, o artigo perde um pouco sua força. Por uma razão simples: Olgária explica o fracasso da universidade atual do mesmo modo que ela explicou, em artigo ainda deste ano, a Guerra do Iraque e o ataque de Israel à Faixa de Gaza. Do mesmo modo que a Igreja, nos tempos medievais, para tudo que dava errado, culpava o demônio, Olgária reavivou essa figura na pele de uma trindade maligna: capitalismo-mercado-lucro. Aliás, diga-se de passagem, essa trindade, para a Igreja do final dos tempos medievais, era prima do próprio demônio.
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Os intelectuais que leram Marx demais nos anos 60, como Olgária Matos, nem sempre fizeram esse tipo de critica, vigente agora. Quando o marxismo era “a ciência de toda a Usp”, Olgária e outros não eram tão marxistas quanto agora. Até porque ser adepto das teses da Escola de Frankfurt, até os anos 80, era não ser marxista ortodoxo de modo algum. Todavia, à medida que o tempo passou desde a Queda do Muro e Berlin e o Fim do Comunismo o início deste nosso século atual, parece que toda uma geração de intelectuais marxistas, até então mais “lights”, digamos assim, se sentiu na obrigação de respirar ares mais pesados. É como se tivessem ficado com medo de ver todo um conteúdo de livros que leram se perder. E então, artigos semelhantes a este como o da Olgária começaram a proliferar pela digitação de gente que, no passado, jamais teria escrito algo assim.
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Eu pergunto: o que vale explicar a universidade brasileira, seu aparente fracasso de formar novos intelectuais, com esse argumento tão geral que, ao fim e ao cabo, por servir para tudo, acaba não sendo útil para nada? Quando alguém me diz que o triunvirato “capitalismo-mercado-lucro” é o que acabou com a universidade brasileira recente, e que nos anos 60 não era assim, eu fico pasmo. Minha vontade é perguntar: nos anos sessenta vivíamos em um Brasil onde não existia nem capitalismo, nem mercado e nem lucro? Sim, tudo leva a crer que sim, se olharmos as críticas da Olgária e outros, atualmente, sempre falando em “globalização”, e não raro fundindo “pós-modernismo” com “neoliberalismo” de um modo pouco aconselhável. Pois, afinal, há tamanha idolatria dessa tal universidade dos anos 60 que daqui a pouco eu vou até achar que também a Olgária esteve lá no grupo de leitura de O Capital, montado pelo José Arthur Giannotti – um grupo que foi menos um fato intelectual e mais um fato jornalístico atual.
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Mas, a verdade é que Olgária está endurecendo o discurso sem se dar conta de que não está explicando a universidade com isso. Ela recriou uma universidade que jamais existiu, e que está somente na cabeça dela, para colocar como uma utopia capaz de servir de base para criticar – não sem razão – a universidade atual. Todavia, quando pegamos entrevistas de Olgária Matos dos anos 80, ela não revela esse saudosismo dos anos 60 que agora percorre seus textos. Ao contrário. Entrevistada pelo Leia Livros, em meados dos anos 80, ela diz duramente que a USP dos anos 60 não lhe ensinou muita coisa, que nem havia aula, que foram greves demais. Olgária parece que era mais realista nos anos 80 que agora.
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Tudo isso, é claro, é muito subjetivo. Mas o que há de objetivo é que a teoria que ela usa em “O crepúsculo dos sábios” não ajuda a entendermos a universidade brasileira. Falar que o mercado equaliza tudo, torna nossas relações abstratas e, então, por causa disso, lá na USP, estamos tendo professores de filosofia que já publicaram mais de meia dúzia de livros ainda jovens, mas que esses livros não foram comprados nem lidos, não explica nada. A relação entre a teoria marxista que ela usa e o objeto que ela quer analisar é análoga a se dizer, por exemplo, que há crimes porque a natureza humana tem um componente de maldade.
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Com menos teoria, podemos fazer melhor, talvez.
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O que dá para sentir é que o ensino superior brasileiro atual está passando por um processo parecido ao que já ocorreu, em décadas anteriores, ao ensino médio. Estamos democratizando a universidade por vias pouco cuidadosas já faz algum tempo, de modo semelhante ao que fizemos com outros níveis de ensino. Foram duas grandes levas de democratização, uma saiu pelas mãos de Roberto Campos e Delfim Neto, nos anos 70, e outra da mão de Lula, agora, passando por um pequeno movimento de democratização também feito por FHC.
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Como isso foi feito e continua sendo levado adiante sob o tacão da pressa, por razões óbvias (nosso país está fazendo em poucos anos o que outros países levaram séculos), realmente a atribulação, o não planejamento e a incapacidade de políticas educacionais articuladas e eficazes se faz patente. Mas isso nada tem a ver, de modo direto e em todos os níveis do sistema de ensino superior, com lucro. “Lucro” é algo muito genérico para se aplicar aos problemas de democratização do ensino superior brasileiro, nas suas diversas ondas de ampliação, considerando o setor público, o setor privado e, enfim, as universidades confessionais e filantrópicas sérias. O problema, de modo mais específico, é o de falta de políticas educacionais federais e estaduais para o ensino superior. E este é o caso agora.
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Aliás, agora a USP deveria até não estar nessa situação que está, de receber uma parte das críticas da Olgária, pois já há quase dezesseis anos que passam pelos gabinetes brasilienses ou de estados, da área de educação e de cultura, uma boa parte dos uspianos. Todavia, uma vez nesses gabinetes, o que fizeram? De modo desorganizado, muita coisa. De modo organizado, nada (e até eu, em certo sentido, tenho lá pequenas bicadas nisso, não só como uspiano, mas também como puquiano!).
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Ora, no caso do ensino superior, eis aí que qualquer social democrata poderia criar uma política educacional que, sabendo-se política social, iria fugir dos elementos mais tolos vindos das pseudo exigências do mundo industrial atual, dosando a capacidade da universidade de se manter guardadora da cultura e ao mesmo tempo incentivadora da inovação. Para tal, o modelo não poderia nunca ser o de produção do técnico que, na filosofia, sabe a respeito de como que Wittgenstein produziu dois – e somente dois – de seus aforismos do “segundo período”, mas que é incapaz de ter uma história da filosofia na cabeça. Mas o modelo não poderia ser, contra este, o de geração do talvez nunca existente sábio que veio “ensinar a beleza dos versos de Petrarca”. Até porque, quem verdadeiramente acreditaria que algum sábio, caso fosse sábio mesmo, iria tentar “ensinar a beleza”?
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Entre esses dois modelos de professor universitário, um criticado e outro inventado, penso que poderíamos ter algo mais viável, e melhor. Talvez pudéssemos ter um professor universitário como a própria Olgária foi, nem técnica e nem idiossincrática. Olgária como professora foi, antes de tudo, inteligentemente criativa. Sua inteligência era tamanha, ali na USP, que mesmo com o marxismo segurando suas pernas – coisa menor que agora –, ela foi criativa a ponto de ser vista como completamente distante dos “marxistas endurecidos”, como uma filósofa que adquiriu muitos admiradores (eu mesmo, claro, Olgária foi minha orientadora em um mestrado e um doutorado na USP, em filosofia).
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Um professor criativo não é o que sabe da cera do ouvido de Wittgenstein ou que faz alguém aprender a beleza, numa lição de lousa e giz, de um verso de Petrarca. Um professor criativo, entre outras coisas, é o que faz você achar que pode olhar Wittgenstein pelos olhos de Petrarca e talvez recriar discursos de Petrarca a partir de noções wittgensteinianas. Isso Olgária sabia fazer. E sabia incentivar outros a fazer. Mas ela, ao teorizar sobre a universidade, preferiu desconsiderar sua própria práxis como professora em favor de um marxismo que pouco nos ajuda.
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Para melhorar a universidade que temos não deveríamos escutar os nossos intelectuais falando sobre educação ou ensino, mas deveríamos apenas vê-los trabalhar na sala de aula. Olgária como professora-filósofa, na universidade, contra todo o marasmo, sempre nos daria o exemplo de como é a aurora dos criadores.
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São Paulo: 19/11/2009
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Por: PAULO GHIRALDELLI JR.
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