Não adianta dizer-lhe que está
errado. Para ele o certo - independente de “argumentos bons”, “boas razões” - é
aquilo que ele diz. E pronto.
O burro e eu temos
diferenças não só conceituais, mas também epistemológicas e comportamentais.
Tenho consciência de que não empaco em conceitos e valores que assimilei ao
longo do tempo para compreender e explicar a realidade e os fatos que me
rodeiam de forma definitiva, irrevogável e eterna. Isto é ponto pacífico para
mim. Eu sou assim, uma “metamorfose ambulante”.
De outro modo isso não
quer dizer que não posso ser determinado em defesa dos conceitos e valores que
utilizo quando percebo que eles servem para compreender e explicar as
circunstâncias. Isso tudo serve-me como meio para não deixar que os filhos de
minha cabeça cresçam acima dela, como diriam MARX e ENGELS.
Quando eu era adolescente
e cursava o ensino médio as vezes estudava de forma displicente as disciplinas
em vistas das avaliações. E nessas vezes ia a uma igreja que ficava no caminho
do colégio. Olhava para uma imagem de Cristo e pedia para que Ele me ajudasse
naquele dia. Ao receber a avaliação corrigida perguntava ao professor se não
havia erro na correção. Ele sempre respondia que não. Então, meu questionamento
tinha de ser com outra pessoa.
Voltava à igreja e
falava para Cristo: “Você não me ajudou, pois esta nota, a média, é resultado
do pouco esforço que fiz”. A sua parte, que seria a complementação da nota para
eu ir além da média, não apareceu aqui na avaliação. Então, resolvi testar essas
“ajudas” de Cristo. Para umas coisas eu pedia a ajuda Dele. E no final só aparecia
o resultado do meu próprio esforço, para o bem ou para mal.
Noutras circunstâncias
eu não pedia ajuda e o resultado sempre girava um pouco abaixo ou acima das
outras experiências “ajudadas” por Ele. Meu ceticismo foi se consolidando cada
vez mais e com isso comecei a avaliar meus valores religiosos.
E quando entrei na
Faculdade de Filosofia encontrei dois colegas ateus. O curioso é que o senso
comum pensa o contrário, que essas faculdades são cheias de ateus. Nada disso,
de 40 apenas dois eram. Aliás, é um espelho das estatísticas dos censos.
Em conversas esparsas
foi ali que consolidei e aprofundei meu ceticismo religioso. Enfim, estava
acertadamente saindo da escuridão gnosiológica do mundo místico, encantado,
religioso. E ao longo do curso tive um professor que era Pastor Evangélico. Um
homem de raciocínio refinado e tolerante (ao contrário da maioria deles).
Não foram poucas as
vezes em que nos envolvemos em discussões por causa da defesa firme do meu
ceticismo. Quando algum colega, o que não era raro posto que naquele ano só eu
cursava como cético naquela turma, fazia afirmações sobre os temas debatidos
apoiado em bases religiosas eu intervinha e refutava a procedência da
afirmação. O professor sempre afirmava: “Tem procedência sim”. Ele voltava-se
para o colega e dizia: “Continue”. E eu dizia: “Tem não”.
Certa vez ele propôs
que discutíssemos um ponto que lhe parecia ainda não esclarecido entre nós. Ele
me pespegou na frente de todos a pergunta: “Você nega que Jesus existiu?”
Respondi que não. “Não sou louco, professor. Não há evidências irrefutáveis
para que eu afirme isso”. Ele continuou: “Então, como você não aceita como
válidas as afirmações que se fundamentam nas verdades Dele?” E eu respondi:
“Mas professor, uma coisa é não negar que ele existiu, outra bem diferente é
admitir como válidas as verdades atribuídas a Ele.”
Mais uns semestres
adiante tive outro professor que desejo citar aqui. Este era ex-seminarista.
Certa vez ele me perguntou, em meio a um debate em sala: “Que evidências
convincentes você pode me dá para negar que Deus exista?” Eu pensei, pensei e
disse: “No momento não consigo elaborar nenhuma”. “E depois, você poderá me
demonstrar?”, perguntou ele. Respondi: “Não sei”. “Então, vamos conversar, pois
vou te apresentar alguns argumentos sobre esse assunto”, disse-me ele.
Minha posição radical sobre
a negação intransigente da existência de Deus foi reformulada. Deixei de ser
ateu para me transformar num agnóstico. E isto só foi possível porque o meu
professor me convenceu com “argumentos bons”, “boas razões”. Sem isso eu teria
permanecido lá onde estava gnosiologicamente. Mas diante de argumentos com os
quais concordei porque me serviam, aceitei mudar de posição.
Um burro não age
assim, mesmo que perceba diante de si “argumentos bons”, “boas razões” ele, por
mera birra invejosa e intransigência orgulhosa, permanece com seus argumentos
ruins, más razões e empaca. Não adianta tentar convencê-lo, pois sua
inacreditável incapacidade de admitir que seus conceitos e valores não lhes
servem mais para compreender e explicar os fatos, a realidade, torna-o, então,
um monstro praguejante. Diz que esse método que utilizo para atualização,
superação, reconstrução de conceitos e valores é falso, pois ele está
acostumado com as pobres opiniões e conceitos indefinidos e conservadores que
vem utilizando para se relacionar e explicar as limitadas coisas que consegue
compreender.
Há alguns anos estava
em sala de aula num colégio do estado e o tema em debate era o “Amor”.
Falávamos sobre os tipos de amor: amor pelos pais, pelos irmãos, pela natureza,
a amizade... Depois falamos que o amor erótico (relativo ao deus grego do amor,
Éros) poderia ser vivido de duas maneiras: o amor imaturo e o amor maduro, e
suas consequências.
Fui, então,
questionado por uma aluna sobre como eu definiria esse tipo de amor, o erótico.
E eu disse: “É o amor resultante da relação entre um homem e uma mulher”. Outra
aluna, do fundo da sala, perguntou por que “entre um homem e uma mulher”.
Diante dessa pergunta percebi que o conceito que utilizei estava completamente
defasado diante dos fatos, da realidade atual.
Propus uma
reformulação: “É o amor resultante da relação entre duas pessoas”. Pois, mesmo
que não se concorde, o que não é o meu caso, com o tipo de amor erótico
homossexual ninguém há de negar os fatos. Pode-se não concordar, mas não
pode-se negar que exista. A aluna do “fundão” me apresentou um bom argumento,
uma boa razão para que eu reformulasse o conceito.
A fundamentação
ideológica que utilizo para explicar os fatos sociais tem a sua base em
pensadores que são clássicos. Vai de MARX, ENGELS, Escola de Frankfurt,(...).
Sobre religião, vai de DEMÓCRITO, FEUERBACH, MARX, NIETZSCHE, RORTY. Minha
visão antropológica do homem vai desde PLATÃO, ARISTÓTELES, HOBBES, ROUSSEAU,
DARWIN, SARTRE, DENNETT, DAWKINS. Sobre cultura, a vejo a partir de MARX, MARCUSE,
BENJAMIN, CHOMSKY, DANTON, SAVIANI, BAUMAN. Sobre educação, vai de: PLATÃO,
ROUSSEAU, GRAMSCI, ALTHUSSER, DEWEY, PIAGET, SAVIANI, PAULO FREIRE, LUCKESI,
GHIRALDELLI. Sobre política, vai de: SÓCRATES, PLATÃO, ARISTÓTELES, MAQUIAVEL,
HEGEL, MARX, FOUCAULT, HABERMAS, ARENDT, RORTY, GHIRALDELLI. Sobre ética, vai
de: SÓCRATES, SOFISTAS, PLATÃO, ARISTÓTELES, DEMÓCRITO, DIÓGENES, EPICURO,
KANT, HEGEL, MARX, NIETZSCHE, RORTY.
Essa seleção dos
principais pensadores (significa que há outros) que fiz acima e que se
constituem como fundamentos, mas não é que sigo tudo o que pensam sobre todos
os aspectos da realidade – NIETZSCHE, por exemplo, só me interessa parte de sua
moral e de sua política, o mais rejeito -, a partir dos quais busco compreender
e explicar os fatos, a realidade não foi feita para demonstrar eruditismo, mas
para explicar de onde vem o meu jeito de ser e viver. A confluência de todos
esses princípios reflete-se no meu modo particular de expressar as minhas
idéias e colocar o meu pensamento. Mas como disse o humorista GROUCHO MARX,
referindo-se a seus princípios: “Se você não gosta deles, eu tenho outros”.
Outro dia mesmo, uma
aluna perspicaz me interpelou sobre religião. “Professor, afinal o que você
pensa sobre religião?” Citei RORTY a partir do livro “O futuro da religião”
quando ele defende a sua privatização. “E sobre Deus”, quis saber ela. Sou
agnóstico, respondi e expliquei o que é ser um. Mas só como adendo, citei o que
ENGELS escreveu no seu “Do socialismo utópico ao socialismo científico” sobre a
minha postura gnosiológica: “Com efeito, que é agnosticismo senão um
materialismo envergonhado?”. Grosso modo, disse a ela, é como se pudesse
traduzir assim: “Um agnóstico é um ateu que não sai do armário”.
Ela de forma sarcástica
e perspicaz perguntou: “Então, quando se trata de religião, você é como um
gay que não se assume?” “É exatamente isso. Você compreendeu bem o que eu disse
e penso”, acrescentei. Gosto de conversar com pessoas desse tipo. São elas que nos
fazem pensar em nossos conceitos e valores e refletir se não já está na hora de
reformulá-los, reconstruí-los, ou só reavaliá-los.
Estes são apenas
exemplos simples, corriqueiros de como as coisas acontecem. Citar exemplos mais
complexos entendo que exigiria muito espaço para explicá-los. Preferi me deter nos
acima citados.
Os burros, ficando
empacados e violentos, só servem para encher o saco e nos fazer sentir que não
vale a pena nos relacionarmos com gente desse tipo. O tipo do burro. Que,
enfim, é aquele que deixa os filhos de suas cabeças se tornarem monstros.
3 comentários:
É melhor ser "essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...", a mudança é um sinal de crescimento e como diria Heráclito: Nada é permanente, exceto a mudança.Parabéns pelo texto, pra mim ele é muito revelador ...rsrs Abraços
Olá Evelyne.
Gosto de falar sobre mim desse modo - o modo do texto. Não sou nada simpático a revelar segredos de minha alma. Principalmente porque sei que há pessoas em quem nunca devemos confiar. Então, para saber de mim só lendo o que escrevo. E muito pouco no que falo. Sou esquisito.
Você como Psicóloga (das melhores que temos, e não é favor dizer isso, é só reconhecimento de seu valor) pode ter alguma teoria que explique e me ajude a melhorar (se é que isso seja defeito) esse meu jeito refratário a intimidades. Até gostaria de fazer umas sessões de psicologia com você. Mas vou deixar para o ano que vem, talvez.
Um abraço e obrigado por participar.
Jair Feitosa.
Caro Irmão,
O texto ao qual ora dirijo este comentário muito me fez refletir sobre as percepções que o ser humano pode ter do que em torno dele circula numa visão trezentos e sessenta graus.
Às vezes, não conseguimos ver por todos os ângulos. Perdemos a visão de alguns graus causada por uma catarata psicológica por não conseguirmos quebrar alguns paradigmas e assim deixamos de ver o que poderia ser interpretado de uma outra forma. Talvez seja a hora de fazermos uma facectomia psicológica para, então, buscarmos, pelo menos, questionarmos os paradigmas que nos consomem, que de acordo com o físico Thomas Kuhn, “reúnem informações ou limitam o território em que se procuram as soluções para os problemas que são enfrentados. E cada problema solucionado reforça a crença no paradigma estabelecido”.
Mas, é assim, mesmo, a humanidade, na sua maioria, segue modelos de vidas mesmo sem saber o “por que” e o “pra que”.
Parabéns pela reflexão!
Airton Freitas Feitosa
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