Imagem da Internet.
Neste texto desejo tratar, grosso modo, de algo que tem
me incomodado nas relações estabelecidas a partir das redes sociais. Mais
precisamente porque lá muita gente se encontra aquém, ou além, do controle de sua racionalidade e de sua
moralidade e expõe os seus demônios* de forma mais livre, visto que sozinhas
não são vigiadas de perto pelos congêneres para reprimi-los. Se sentem mais
soltas, mais livres.
Esse comportamento possibilitado pelo relacionamento
“indireto” nas redes sociais já é objeto de estudo de cientistas. Desejo
relatar como vejo esse acontecimento e como entendo essa faceta. Não postulo ‘a
resposta’, mas apenas uma breve definição que deve ser alvo de crítica e
refutação.
Com o surgimento do pensamento racional na Grécia Antiga
pelos primeiros filósofos que também eram cientistas, ao modo do que se
entendia a ciência na época, o caminho para as verdades fundamentadas estava
criado. Antes, porém, o pensamento mítico era fundado nos desejos, vontades,
verdades dos deuses da mitologia. Esses deuses eram possuidores de
caraterísticas humanas. Foram antropomorfizados. Então, a inveja, o ódio, o
ciúme, o castigo, a recompensa, a bondade dependia dos humores desses deuses
quase humanos.
Consequentemente, já que tudo dependia das decisões divinas,
a vida tinha, assim, dificuldades de ser projetada, objetivada, programada. Isto
posto, não havia certeza dos acontecimentos das coisas e nem das ações humanas
de modo que os levassem a objetivação e programação das ações.
Os pensadores que vieram a partir do final do século VII a.
C. postularam uma nova interpretação e explicação da verdade. Procuraram “nas
coisas mesmas”, e não no divino, o entendimento do funcionamento da natureza e
das ações humanas. Assim desejavam estabelecer uma organização racional para
tudo o que existia.
As verdades foram, então, fundamentadas no estudo da natureza
e das ações humanas. A chuva, portanto, deixou de ser um presente divino e
passou a ser entendida como o modo próprio de ser e de funcionar da natureza. A
verdade deixou de ter uma sustentação mítica, fantasiosa, encantada. Mas mesmo
assim o divino, lá no fim das coisas, ainda era algo a fundamentar quase tudo,
tanto em Platão quanto em Aristóteles, os pais da razão ocidental. E esse
aspecto foi ocidentalizado a partir da Idade Média com as interpretações de
Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino feitas das obras de Platão e
Aristóteles, respectivamente.
Com o cristianismo o fundamento das verdades voltou ao
divino. Deus é a causa de todas as coisas, inclusive das verdades. A verdade
está em Deus e Deus está “todo” Ele na bíblia. Conhecer é reconhecer as
verdades divinas primeiro. Crer para entender. As verdades contém o fundamento
inquestionável, Deus. Como Deus é imutável as verdades divinas, então, não
mudam.
Quem parte desse ponto para explicar os costumes, os fatos,
as verdades, as ações assumirá uma postura fundamentalista. E seu pensamento
será sempre conservador, já que deseja fazer permanecer, conservar as verdades
imutáveis. Para essa pessoa qualquer verdade que fuja do fundamento divino é
uma heresia, uma mentira, uma impostura. As verdades já foram ditas. As
verdades já são.
Com a Modernidade as coisas começaram a mudar e a Ciência
passou a ser o fundamento das verdades da natureza e das ações humanas. Só que
a Ciência aqui é o prenúncio do que a entendemos hoje.
Depois, no final do século XIX veio Nietzsche e disse que
Deus tinha morrido. Até hoje ele paga pelos erros crassos de interpretação do
que disse. Nietzsche não matou Deus como alguns fazem com outros humanos num
assassinato. Mas é assim que afirmam religiosos fundamentalistas toscos. O que
ele disse foi que acabou o tempo de verdades eternas e imutáveis para a vida
altiva.
Nietzsche disse que a verdade não tem fundamento imutável. O
que há é um desejo de muitos em tornar as verdades como sendo do âmbito do
imutável. É um desejo, uma vontade. Portanto, é algo que se refere ao humano. É
a mesquinhez e vingança contra esse mundo que se torna constantemente diferente
daquilo o que está nas verdades fundamentadas no divino.
Essa busca pela conservação não nos leva à sobrevivência em
sociedade, como seria de se esperar, mas à arrogância de querer que as verdades
não se modifiquem para que não modifiquem a realidade. Mas com isso ele não
concordou com a tentação da supremacia da verdade exclusivamente imposta pelo
racionalismo.
A verdade é uma forma de descrevermos os fatos a partir dos
dados disponíveis que temos em mãos para fazê-lo. A verdade é construída por
nós a partir da vontade de poder afirmativa que nos leva à vida. A vontade de
poder negativa é o desejo de fugir à dureza da vida, disse Nietzsche. Essa
dureza, no que trato aqui, indica como sendo as mudanças de comportamento, de
costumes, de valores, de normas, de regras.
Sendo a verdade uma descrição, então, a verdade de hoje pode
não ser mais a de amanhã, pois novos elementos podem nos levar a acrescentar
caraterísticas novas à descrição anterior. E isso é duro para quem é
conservador, fundamentalista.
Deixo Nietzsche por aqui e sigo rumo ao final do texto.
O que necessito como segurança para agir e transformar a realidade
é histórico. A explicação é científica, mas a validade é temporal.
Como posso fazer para explicar historicamente os fatos e
mesmo assim ter certeza de que posso agir objetivando, planejando o que
pretendo fazer no futuro? Essa projeção baseada nas verdades de hoje me
permitem planejar as ações no futuro. Mas não há garantia de que as bases de
funcionamento da realidade serão as mesmas. Todavia me faz perceber que serão
outras e mesmo assim elas possibilitarão a ação planejada porque serão também
racionais. Em outras bases, é claro.
A explicação para isso é que as verdades atuais são definições
que fazemos hoje com o conhecimento que somos capazes, hoje. Amanhã, se essas
definições não forem mais suficientes, não derem mais conta da realidade e nem
nos servirem mais, então, criaremos novas definições. Definições com novos
elementos, como já disse.
Até o início da década de 1930 as mulheres não tinham direito
ao voto. Um dos argumentos mais utilizados era que as mulheres não eram
preparadas racionalmente para escolher legisladores. Mulheres divorciadas eram
igualadas a prostitutas até poucas décadas atrás. Uma mulher só poderia
trabalhar fora de casa se o marido autorizasse. A virgindade era um
pré-requisito fundamental para o namoro, noivado e casamento até os anos de 1970.
Todas essas verdades tinham fundamentos imutáveis. “Desde que o mundo é mundo
que isso é verdade”.
No entanto as minorias sempre avançam e conquistam seus
espaços, estabelecem seus costumes, hábitos, preferências, construindo novas
definições, novas verdades.
São sempre as minorias porque as maiorias (sociologicamente
falando) tendem a conseguir e conservar seus valores, comportamentos, direitos,
garantias... Então as minorias têm de lutar e buscar conquistar, como estão
fazendo.
Quem afirma verdades fundamentalistas é um arrogante,
declarou o rabino Abraham Skorka. Essa arrogância impede o diálogo. Impede que
se siga um caminho para o mútuo respeito. O arrogante não permite que o outro
tenha uma descrição divergente da sua. Ele quer que o outro assuma as verdades
fundamentadas no divino como uma definição inquestionável sobre o tema que
estiverem tratando.
Nas redes sociais está se travando uma guerra de arrogâncias
insuportável. Religiosos que arrogantemente não respeitam os outros aparecem
para destratar, xingar, subestimar, demonizar os divergentes. Não estranharei
que em breve travem uma guerra física nas ruas. Pois o ódio demonstrado por
alguns religiosos nas redes sociais está preste a ser transformado em agressão
física. E não é exagero. Falta oportunidade.
Como vemos em outras dimensões, que não a da religião, como
em algumas torcidas organizadas de futebol, pessoas alimentam ódio entre os
grupos nas redes sociais e depois marcam um lugar para a agressão física com a
finalidade de matar os divergentes. Estamos próximos disso. E não estou sendo
exagerado, não. Até um pastor agiu de forma irracional e irresponsável em
confronto com outras opiniões na minha página no Facebook.
Recebo constantemente pedidos de amizade de pessoas religiosas,
tanto católicos quanto evangélicos para ingressarem na minha página na rede
social. Uns que conheço superficialmente, aceito. Outros de quem nunca ouvi
falar, rejeito. Um desses que aceitei chegou aparentemente sério, mas demorou
pouco para mostrar seus demônios interiores.
Assumi a minha atitude costumeira nesses casos e bloqueei o
elemento. E ainda disse para ele ir vociferar as idiotices lá no púlpito dele. Não
entendo o motivo de tantos religiosos desejarem ingressar em minha página. Logo
eu que sou um agnóstico declarado. Talvez eles utilizassem melhor o tempo indo
atrás de quem precisa de ajuda espiritual.
Detesto o assédio espiritual. Eu não digo para ninguém deixar
de acreditar ou começar a acreditar nas coisas divinas. Mas também não aceito
que venham a mim com esses discursos tolos de religiosos mal formados. Ainda
mais quando não aprenderam ainda a diferença entre verdades fundamentalistas e
verdades históricas. A arrogância parece ser o fundamento e não as verdades
divinas.
Saímos da Antiguidade e chegamos até aqui sempre em busca de
verdades. Elas são necessárias, mas a forma como as definimos pode nos tornar
pessoas arrogantes, ou do lado oposto, pessoas capazes de seguir adiante junto
com o tempo na perspectiva de sempre se atualizar com as novas verdades e com
os novos comportamentos.
Sou um não-conservador. Sigo em frente junto ao meu tempo.
Talvez esteja aí o motivo de tantos desejarem me rastrear, me acompanhar. Esses
são incapazes de se atualizarem com os novos tempos porque estão presos ao passado
e desejam conservá-lo já que as suas verdades arrogantes não se modificam
nunca. São sempre as mesmas.
Mas o mundo real não é assim. “Tudo flui, nada persiste, nem
permanece o mesmo", disse Heráclito de Éfeso. “Tudo muda o tempo todo no mundo”, ratificam
Lulu Santos e Nelson Mota**. E essas mudanças, como já disse, são levadas
adiante por aqueles que estão em menor número e desejam garantir para si o
mínimo de dignidade entre os humanos. São eles que também fazem as coisas
avançarem. E isso é ultrajante para os fundamentalistas.
Pobres diabos. São como tartarugas que dão caronas a lesmas.
Estão sempre presos ao passado e vivendo numa esquizofrenia insuportável. Ao
mesmo tempo em que desejam de alguma forma certo nível de atualização (o desejo
de possuir as coisas modernas) se debatem interiormente com as ordens
conservadoras. E essa esquizofrenia se reproduz no comportamento agressivo e
irresponsável porque o outro se mostra sem controles conservadores
fundamentalistas e vive de forma livre.
Do outro lado eu sigo sempre nesse processo histórico e rico
das novas e constantes definições das verdades.
* Demônios são ficções morais quando a palavra ‘demônio’ é
usada no sentido estrito religioso. Mas também tem o sentido de marcar a
constituição humana como possuidora de instintos. Nossos instintos são
demônios. São vistos assim por causa da moral vigente e do predomínio da ideologia
racionalista. Tudo o que a moral condena é demônio. Tudo o que não se deve
fazer segundo a moral tradicional e conservadora é coisa do demônio. E quando
isso está dentro do sujeito, então se chama demônios interiores.
** Busquei Lulu Santos e Nelson Mota como forma de mostrar algo
coloquial mesmo.
P. S.: Verdades racionais e verdades religiosas são por
princípio opostas. Isso ficou claro nos mil anos de supremacia do cristianismo
na Europa na Idade Média após longas e extenuantes discussões. Até hoje tentam
a conciliação, mas enquanto os princípios de cada uma (a razão ocidental,
científica e filosófica é a base das verdades racionais, a fé é a base das
verdades religiosas) forem antagônicos teremos essas idiossincrasias.