FUNÇÃO OU DISFUNÇÃO NA REPÚBLICA DOS “CORONÉIS”.
Ouvindo conversa de um extasiado partidário do atual prefeito de Floriano testemunhei as seguintes assertivas: “Nós merecemos a atual administração porque era uma necessidade de nosso povo”. Indaguei sobre o fundamento de tal proposição. A resposta: “Estava mais do que na hora de modificar o quadro político para balancear”. Por quê? “Nas últimas décadas só tivemos pessoas da elite(1) comandando o nosso município e nunca fizeram nada pelos pobres, agora chegou a nossa vez”. E qual a importância de termos alguém do “estrato social subordinado” como prefeito? “Para mudar”. Não existe explicação ideológica ou lógica, é mudar por mudar. Assim pensa a maioria dos autodenominados “coronéis”, ou seja, alguns indivíduos estão deslumbrados com o poder e dizem que deixaram de ser “soldados” e subiram de patente.
Analisando o raciocínio do extasiado partidário encontramos nas entrelinhas algumas hipóteses que merecem ser explicitadas. Vamos começar pelo final quando ele propõe que a elite não buscou saciar as necessidades das classes sociais subalternas. É uma grita inquestionável. Mas o desejo de mudança também traz implícita a premissa de que para manter a ordem e a coesão social necessitamos de alternância de poder entre as classes sociais. Isto dentro de um sistema social que vem sendo perpetuado há mais de trezentos anos baseado na predominância de uma classe social sobre as demais - a burguesia.
Se levarmos adiante este tipo de raciocínio e sua fundamentação sociológica, podemos inferir que para a nossa sociedade se manter sem alterações radicais ou transformações, necessitamos proporcionar às classes sociais subalternas o procedimento da satisfação momentânea do poder. O estudioso dos comportamentos sociais MAX GLUCKMAN fez um levantamento de rituais de rebelião entre mulheres zulus. Num resumo podemos dizer o seguinte: Rituais agrícolas são executados todos os anos quando se inicia a plantação dos alimentos. As mulheres adquirem uma autonomia em relação ao controle exacerbado dos valores machistas. As mulheres se soltam, cantam lascivamente e nuas. Num determinado momento todos se fecham em um casebre e se algum homem se aproxima e toca uma delas, elas todas podem atacá-lo(2).
Moral da história, as mulheres que vivem sob um regime de extrema falta de autonomia, de liberdade, onde os homens mandam e desmandam, uma vez no ano tem seu momento de expurgo das raivas, frustrações, humilhações, insatisfações. Depois desse momento tudo volta a ser como dantes. Segundo MAX GLUCKMAN esse ritual possui uma função que é o propósito de resolver as tensões criadas pela predominância dos valores masculinos nas relações sociais. Ou seja, para que as mulheres não enlouqueçam, não se destruam por não suportar tais relações, a elas é oferecida uma única oportunidade de troca de papéis. Pois é, o ritual possui uma função, não é uma brincadeira tola que muitos não conseguem entender e supõem exótica.
Vejamos os nossos similares: carnaval, futebol, “besteirol” na televisão... As classes subalternas são exploradas mas em compensação possuem os seus momentos de externação de suas raivas, frustrações, humilhações, insatisfações, esperanças, sonhos. Como exemplo podemos citar uma declaração do técnico da seleção brasileira de futebol “Dunga” logo após a vitória sobre a Argentina na final da copa América de 2007: “dedicamos esse título ao trabalhador brasileiro que acorda cedo e trabalha duro e tem como alegria apenas as vitórias da seleção”.
Segundo o extasiado partidário do prefeito - sem nem mesmo ter consciência do significado do que disse - as nossas tensões entre as classes sociais no que se refere ao poder executivo de nossa cidade são resolvidas através das alternâncias. Por muitos anos a elite assumiu e detém o poder. Mas de vez em quando deve abrir mão desse poder para arrefecer as tensões sociais e manter o equilíbrio sem rupturas, sem desequilíbrios, sem disfunções. Seria um fundamento funcionalista utilizado para analisar os fatos.
Quanto à afirmação de que há muitos anos somos governados apenas pela elite, requer um reparo. Nas últimas décadas, na verdade, fomos governados por pessoas de origem social subalterna. Mas por que para os “coronéis” permanece a impressão de que foi pela elite? As pessoas, apesar de uma origem humilde, depois que assumiram o poder começaram a defender as necessidades e valores do novo extrato social que assumiram. Em outras palavras, tinham uma origem humilde, mas depois de ascender ao poder se livraram de todas as lembranças dessa origem e assumiram o modo de vida da elite. Nesse sentido o atual prefeito vai se manter humilde, apesar de quando terminar o mandato ter acumulado legalmente, através de seu salário, uma substanciosa soma de R$ 480.000,00? Esse montante o identificaria socialmente com a pequena burguesia.
E os valores da classe social a que pertencia serão esquecidos? As necessidades da classe social em que nasceu serão atendidas? Vale ressaltar que não defendemos a permanência de ninguém em estado de pobreza, de necessidades. Pelo contrário, desejamos a conscientização política das pessoas para que todos possamos viver dignamente. Somos humanistas e como tais defendemos integralmente a inclusão social de todos os cidadãos, e não de apenas alguns. Tentamos apenas entender o fundamento do que foi dito.
Segundo ÉMILE DURKHEIM a Sociologia pode ser definida como o estudo dos fatos sociais. Os fatos sociais para poder ser estudados cientificamente são tratados como coisas, objetivamente. “Fato social é a maneira de sentir, pensar e agir socialmente exteriores aos indivíduos e fundamentados na coação”. Assim, o comportamento dos indivíduos num determinado grupo social tem que seguir as normas estabelecidas socialmente, senão sofrerão sanções. Nessa visão a postura adotada pelos prefeitos de Floriano que são originários do coletivo social subordinado pode ser compreendida. Se não adotarem os novos valores, sofrerão reprimendas daqueles que compõem o estrato social a que tiveram acesso. Para ser aceitos como novos-ricos tem que defender os valores pequeno-burgueses.
Então, se essa postura pode ser estendida a todos os que compõem o governo municipal, e a todos aqueles que desejam que aja em suas vidas uma mobilidade social ascendente, daqui a uns duzentos anos talvez todos de nossa cidade sairão da pobreza. Pois, basta aguardar a vez em grupos para assumir o poder político, assim irão ser ricos e “coronéis”. Essa é a postura patrimonialista de governo. Assumir o poder com o objetivo indisfarçável para enriquecer, mesmo que de forma legal, os seus.
Na atual administração municipal não se vislumbra nenhum indício de políticas sociais, econômicas, culturais que possibilitem às pessoas através de esforços próprios e possíveis a luta por uma vida digna. Não se vê nenhuma indicação de busca de mecanismos que estruturem a nossa economia, a nossa sociedade, com o objetivo de assegurar concretamente a todos a oportunidade de lutar por um futuro melhor. O que vemos são elucidações de intenções não explicitadas durante a campanha eleitoral.
Já se disse, voltando aos fundamentos do extasiado partidário do prefeito, que tudo o que existe possui uma função, e toda função deve ser em benefício do todo social, da sociedade. Sendo assim, a pobreza teria a função de fazer com que tudo funcione bem, de forma harmoniosa. Seria o contraponto da riqueza. Se é assim, como eles podem, por outro lado, deixar de ser pobres através do exercício do poder? Seria uma disfunção. Estariam provocando uma desarmonia, um descontrole no sistema social. Estariam “bagunçando o negócio”. Assim pensam os funcionalistas nas suas origens.
Quando digo que o que mais me intriga nesse governo é a falta de argumentos para justificar as suas ações, algumas pessoas me chamam de chato, prepotente, arrogante, sabichão... Não possuem fundamentação teórica. Cada um fala o que quer e assim justifica à sua maneira a administração municipal. O que pretendemos é demonstrar que essa turma está improvisadamente exercendo o poder. Está exercendo o poder sem ter a menor noção de fundamentos ideológicos para justificar as idéias, as palavras, as ações. É lamentável termos que conviver com esse estado de coisas. O que pretendemos é demonstrar a alienação que suplanta as cabeças integradoras dos extasiados “coronéis”.
Raros, raríssimos são os intelectuais bem estruturados que compõem esta administração. Não é em absoluto uma regra, como acabamos de ver neste texto que fala de uma cidade que hoje é governada por uma trupe comandada por inconseqüentes e incompetentes seres que se julgam, agora no poder, como os donos da cidade. Bastaria, para esclarecer os adjetivos aqui utilizados, relatar o caso daquele senhor que foi vigorosamente levado ao cárcere por ter ousado cobrar do alcaide promessa de campanha em sua casa. Ou o caso da professora que ousou tratar uma “dondoca” pelo nome de registro, quando foi quase que obrigada a tratá-la pelo cargo que ocupa no atual governo, como não cedeu foi demitida da função de confiança que ocupava na administração. Ou o caso de uma pessoa que solicitou a ajuda ao alcaide para fundar uma O.N.G. e que foi destratada porque o prefeito reprovou o fato dela ter lido e distribuído um texto de nossa autoria. E ... é melhor guardar os fatos para outro texto. Por enquanto basta isto para demonstrar que estamos vivendo no que está sendo consignado como a “República dos Coronéis”.
PS: O negócio é que não há espaço para todos no topo do sistema social. Eles, os “coronéis”, chegaram e é o que importa, os outros terão que se contentar apenas com a falsa sensação de que existe um representante de sua classe social exercendo o poder. É um imaginário decorrente de imposições ideológicas. Pura ficção, como já foi demonstrado no texto. O êxtase completo seria se além do poder político, esses indivíduos detivessem o poder econômico, social e cultural. Aí a soberba seria insuportável. Ainda bem que a história de nossa cidade tem demonstrado em longos períodos que a maioria deles é incompetente para tal propósito. Detêm apenas o poder político, e o dinheiro que advém desse fato não é suficiente para formar um controle social forte e terminam todos arruinados. Quem viver verá o mesmo acontecer com os supostos “coronéis”.
(1) A elite aqui se entende como aquele grupo de pessoas de uma sociedade que sempre se mantém coeso e endógamico, reproduzido-se de geração após geração para se perpetuar no poder social, político, econômico e cultural.
(2) Sintetizado a partir do livro "Introdução à Filosofia da Ciência" de Inês Lacerda Araújo, Ed. UFPR, 2003.
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