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. LULA, O FILHO DA POLÍTICA
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Lula de barba branca e aparada, fingindo falar errado, com reputação internacional como presidente e com a aprovação interna de mais de 80% do eleitorado é bem diferente do Lula do início da década de 80. Aquele Lula tinha uma barba preta horrorosa, olhos esbugalhados, tentava falar corretamente e buscava a todo custo entender de salários e de relações políticas. Tinha aprovação interna também – interna aos sindicatos.
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O Brasil da década de setenta para oitenta não agüentava mais o Regime Militar. Tudo que os militares haviam feito, associados aos tecnocratas que vieram das elites civis para lhes servirem e, em alguns casos, até decidirem por eles, havia falhado. Senão tudo, ao menos tudo que era importante para os olhos e bolso da população. Lula foi o homem certo na hora certa: era jovem e operário em um momento em que todos os mais velhos da esquerda e do centro esquerda em São Paulo – talvez até do centro ao centro direita – votaríam em Montoro, político profissional, dizendo aos “meninos do PT”: “ah, gostamos de vocês, vamos votar no Lula um dia”. Era mentira. Era verdade. Não se sabia. Foi a eleição de 1982 para governadores de Estado. O PMDB ganhou em São Paulo e na maioria do Brasil. Mas, sem dúvida, o melhor programa de governo era o do PT. Lula fez boa votação para um iniciante.
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Tivemos eleições para governadores e, então, criou-se uma situação esquisita: o poder federal era fruto da herança do golpe de 1964, nas mãos do Presidente General Figueiredo, enquanto que os Estados eram governados por políticos eleitos pelo voto direto. Não demorou muito para que a tal “sociedade civil”, de que tanto se falava na época, empurrada pelo dinheiro e pelo prestígio desses “governadores de oposição”, viesse a alimentar o movimento da “Campanha das Diretas Já”. A campanha não foi vitoriosa, as “Diretas” não vieram, e saímos do Regime Militar pela “via do Colégio Eleitoral”. Todavia, para todos que participaram do “Palanque das Diretas”, ocorreram ganhos políticos inestimáveis. Sem dúvida, Lula foi o mais beneficiado entre todos. Ter ficado ao lado de Montoro e Ulisses e, melhor ainda, de Tancredo, o ajudou a aparecer nacionalmente como alguém que “as elites de oposição ao Regime Militar” não só toleravam, mas acolhiam.
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Lula foi eleito deputado, mas não mostrou aptidão pela carreira no Legislativo. Foi então que tomou uma decisão que poucos políticos possuem a coragem de tomar: decidiu não se candidatar a nada a não ser à Presidência da República. O jornalista já experiente na época, Clóvis Rossi, então comentou que a aposta de Lula era vista como errada por todos: ficar fora da política daria a Lula o esquecimento. Mas, continuou Clóvis Rossi, Lula poderia estar acertando em cheio: ele viria como um vingador “de fora” de toda a política, quando esta desse sinais de esgotamento. Assim, Lula satisfaria o desejo de vários setores do eleitorado. Viria pela via democrática, a do voto, mas também pela via sempre esperada por setores pouco democráticos da direita e da esquerda, a chegada por cima, “pura”, sem contaminação com o “jogo sujo” do Parlamento. Deu certo.
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Quando Lula recebeu a faixa de Fernando Henrique, ele mesmo disse isso: fizemos uma “revolução pelo voto”. Ora, a essa altura Lula havia saído de várias campanhas políticas, já estava há trinta anos como um funcionário do PT, era um político profissional tanto quanto todos que ele e o PT haviam criticado durante anos. Tinha feito todos os acordos possíveis para estar ali onde estava. Mas Lula sabia bem que uma boa parte da elite brasileira, em especial a paulista, não o tolerava. Era como se ele fosse um novo Brizola, alguém jamais tolerado em São Paulo, ao menos nos Jardins. Portanto, quando falou “fizemos uma revolução pelo voto”, ele estava se dirigindo não aos grupos politizados, mas aos que ficaram sabendo da existência dele de uma forma até mítica, contada por ele mesmo ao percorrer o Brasil durante duas décadas. Ninguém andou o Brasil como Lula.
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Quando Lula se elegeu, o PT já não tinha mais nada do PT que ele fundou. Talvez só uma única coisa: os grupos com práticas mais “estalinistas”, digamos assim, haviam tomado o controle do partido já fazia bom tempo. Tanto é verdade que um democrata que havia sido Presidente Nacional do PT, o professor Francisco Weffort, nem estava mais ali, tinha ocupado um mandato no governo do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. O PT chegou ao poder não mais com a força dos jovens de 1980, mas com a energia inquebrantável de um animal político chamado José Dirceu – o burocrata cujo discurso, até hoje, não foi superado por ninguém nas esquerdas em temos de objetividade e capacidade de dizer o melhor caminho para o PT: a social democracia aguerrida.
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“Zé Dirceu” deu a “cara do PT” para o primeiro governo de Lula. O próprio Lula parecia um pouco ofuscado “pelo Zé”. E então veio a “crise do mensalão”. Um grande esquema de corrupção, envolvendo dinheiro público com focinho de empréstimo privado, servia para corromper o Parlamento e, assim, fazer com que Lula pudesse governar como um imperador, sem oposição. Quando o “mensalão” foi trazido à luz, o senador Pedro Simon, do PMDB gaúcho, velho de guerra, anunciou uma grande verdade: um crime eleitoral, administrativo e moral totalmente desnecessário, pois todos estavam torcendo para Lula acertar, até mesmo FHC! Sim, em grande parte, Lula, o operário, era uma esperança. Exceto a velha elite paulista, com alguns penduricalhos em outros estados, todos queriam que alguém do povo “não falhasse” no governo. Quando Lula falhou ao deixar “o Zé” comandar o esquema corruptor, a população ficou pasma. A militância do PT se dividiu. As elites paulistas revitalizaram o velho sentimento “anti-povo” que tinham lá de antes de 1980, talvez de antes de 1930! Mas, mais uma vez, aconteceu aquilo que sempre ocorria antes de 64: a direita política tinha o momento certo, só não tinha o homem certo. Não havia candidato para enfrentar Lula. Assim, mesmo desgastado, ele se reelegeu. Ganhou um segundo mandato.
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Todavia, antes mesmo dessa eleição, houve um período negro para Lula. Sem Zé Dirceu, Lula capengou nos seus discursos durante meses. Parecia abobado. E a pirâmide de escândalos não parava. Todo dia alguém do PT aparecia na imprensa roubando alguma coisa! Claro que o “mensalão” tinha envolvidos de outros partidos e, enfim, o próprio FHC fez a oposição recuar quando viu que o senador Azeredo, do PSDB, chefe partidário, estava mais que envolvido também na “grande tramóia de Zé Dirceu, Valério & Cia”. Mas, no frigir dos ovos, Lula recebeu todos os impactos possíveis. Absorveu, absorveu e absorveu os golpes. Até que os escândalos foram cessando. E eis que então, uma idéia simples, cultivada lá no interior do MDB desde antes de 1980, foi colocada em prática pela nova equipe de Lula, sob o comando de um menino que havia virado homem, Guido Mantega. A idéia era a do aquecimento do mercado interno. Veio uma fantástica crise financeira pelo mundo e o Brasil de Lula tinha mercado interno para sobreviver – Mantega havia pensado certo. Passou a crise. E o Lula é, agora, este Lula com o qual começamos o texto: um presidente nos braços do povo. Até nos braços de Sarkozi, o presidente francês que nada tem de simpatias pela esquerda.
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Essa política econômica de aquecimento do mercado interno é correta, mas ela tem os pés de barro. A oposição sempre disso isso. A política social de Lula não é propriamente uma política social, ela é um tipo de assistencialismo expandido. A qualquer momento, ela pode começar a fazer água. Pode? Pode, mas não necessariamente vai fazer água. Há espaço político e econômico para se continuar com ela ainda, talvez por mais tempo que o PSDB imaginou. Além do mais, o que a oposição propõe é algo muito temerário. A oposição se reduziu ao núcleo anti-povo dos Jardins da cidade de São Paulo e aos penduricalhos conservadores pelo resto do país. O projeto dessa elite é mesquinho, pequeno, anti-democrático e, não raro, incapaz de ter hegemonia exatamente porque exclui as pessoas do mercado. Isso é tão verdade que o candidato dessa elite, José Serra, está desde 1961 na política, já foi candidato à Presidência, e não consegue subir nas pesquisas de intenção de voto de modo algum. Está na frente, mas isso pelo fato de que a candidata da situação é uma ilustre desconhecida dos brasileiros. Ninguém sabe quem é Dona Dilma.
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Nisso tudo, Lula começa 2010 com o seu novo partido: o P-Lula. Sim, Lula não tem mais nada a ver com partidos, nem com candidato algum. Ele nunca quis saber de Dilma. Para ele, tanto faz Dilma ou Serra. Lula vai tentar terminar o ano de modo olímpico: se tiver que passar a faixa para Serra, estará passando a faixa para um visível incompetente que ele derrotará fácil na próxima. Caso passe a faixa para Dilma, quando chegar na próxima, bastará dar um assovio para que ela volte para a cozinha, junto com Mariza. Sabe-se muito bem que Lula cuida bem das companheiras. Ele é um feminista nato. Verdade, sem ironia, Lula tem apreço pelas mulheres, contanto que elas façam como os homens, o obedeçam.
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Lula aprendeu a fazer política. E fez. Fez com inteligência, garra, coragem, sacanagem, pinga, amor pelo povo pobre e amor, principalmente, por ele mesmo. Tem hoje um currículo tão invejável quanto o de FHC. Diferente, mas tão brilhante quanto. Lula nunca foi o filho do Brasil, somente, Lula foi e é um autêntico filho da política brasileira. Lula é o político profissional que conseguiu passar a vida toda como um não profissional da política. Vargas se matou para ocupar um lugar na história. Lula vai fazer sombra a Vargas sem qualquer sacrifício tão terrível. Vai fazer isso muito vivo e bebendo uma boa cachaça. Às vezes me pego torcendo por ele, afinal, pessoas como eu não conseguem engolir Ana Maria Braga, Regina Duarte e Danusa Leão ficando com “medinho da Dilma”. A elite paulista é tão pequena mentalmente que ela faz Sarney, o da elite do Maranhão, aliado do Lula, virar um bom homem. Talvez esteja aí o segredo de Lula, o de nunca ter perdido a noção de que a Avenida Paulista é boa para nós, paulistanos, que nunca tivemos de vender limão nela.
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Por: PAULO GHIRALDELLI JR.
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07/01/2010
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