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terça-feira, 25 de outubro de 2011

CAPITALISTA VIVO. COMUNISTA MORTO.



A languidez pingava pelo rosto desanimado de Rafael provocada pelo calor irritante, e pela dureza da vida, potencializado pelo vento que soprava na parada de ônibus que ele frequentava diariamente desde criança. No começo, para ir à escola, agora para ir ao trabalho. Tudo formava, desse modo, a imagem triste e autêntica do desamparo social de sua condição. A casa de Rafael fica na favela cortada pelo rio fétido e maltratado que, antes, também divide a avenida bem cuidada e iluminada da parada de ônibus na parte que ele é mais limpo e preservado.

Homem religioso era incapaz, por causa da educação elementar que teve até o ensino médio, de perceber que a sociedade onde vive foi inteiramente criada pelos próprios homens. Que o modo como se divide tudo o que foi feito pelo trabalho de todos depende do poder daqueles que aprenderam a agrupar interesses e união dos pares para ter mais força e assim ficar com a maior parte do bolo. E a maioria, como ele, por mais que contraditório, tem menos poder, menos força, menos união e, por isso, fica com a menor parte que é a que lhe cabe por não ter noção de sua condição. Mas Rafael não entende nada isso.

E na parada de ônibus lê trechos de seu livro sagrado que diz que quem fica com menos, ou quase nada, na divisão da riqueza nessa vida, gozará de privilégios no céu dos crédulos, mas só quando morrer. Lá tudo é de todos, ninguém é explorado e todos se servem, usufruem de tudo por igual. Sem distinção de cor, origem social, econômica e cultural - a tal condição de Rafael.


Rafael para a leitura por um instante, levanta a cabeça e olha, mas nada de o ônibus vir. “Está atrasado como sempre”, suspirou resignado. Tão resignado que não percebeu que estava ali esperando já fazia uma hora e quinze minutos. Ao lado, sentado, estava um estudante de Sociologia que olhava com desdém para ele e seu livro sagrado. Pensou então Ivan, o estudante, o que diria Locke sobre o projeto comunista das divindades. Ivan é uma espécie de niilista.

Para tentar um passatempo melhor Ivan propôs a Rafael começar uma daquelas conversas que se iniciam, mas não terminam nunca porque sempre um dos envolvidos tem de ir embora na hora do ônibus.

- Posso fazer perguntas sobre as certezas de sua crença e sua disposição subalterna para viver neste mundo de acordo com as regras impostas? Iniciou Ivan pedindo razões.

- Acho que sim. Replicou um desconfiado Rafael.

- Você crer numa divindade que viva num mundo à parte e seja o demiurgo deste? Essa divindade, que é justa e boa, preparou um mundo bom, justo e feliz para todas as suas criaturas num paraíso?     Importunou Ivan.

- Sim, claro que sim. Confirmou Rafael.

- Quero pô-lo a enfrentar um dilema, então. Posso? Preveniu Ivan.

- Só até o ônibus chegar. Objetou quase sem querer, Rafael.

- Por que elegemos a propriedade privada como um dos nossos direitos naturais enquanto vivos se quando morrermos iremos viver num lugar onde tudo pertence a todos e todos se servem por igual de tudo? Amolou entusiasmado o futuro sociólogo meio niilista.

- Ora, Deus nos deu o livre arbítrio, cada um faz o que quer e acha que é verdadeiro, justo e certo. Disse Rafael em tom de pregação. - Deus nos instrui a não roubar e, portanto, devemos respeitar a propriedade dos outros. Isto está errado? Indagou o impaciente crédulo.

- Não, não está errado. Pelo menos de acordo com os nossos valores. Mas para quê nos submetermos a esse regulamento aqui na terra se no paraíso tudo é de todos? Lá é onde não existe propriedade privada, não é? Devolveu Ivan.

- São os desígnios de Deus. Só Ele pode responder a Seus próprios intentos. Disse Rafael, que nunca tinha passado por tal situação.

- E por que temos de viver e morrer num mundo injusto como o nosso para depois viver eternamente num mundo justo? Por que temos de nos submeter ao trabalho explorador nesta vida se no paraíso não há explorados? Não seria melhor dar um jeito de morrer logo e ir direto para o paraíso sem ter de sofrer tanto quanto estamos sofrendo todo dia? Perguntou o niilista iniciante.

- Ah, disso só o Poderoso sabe. Só Ele pode te responder. Talvez lendo as Suas palavras você encontre as respostas. Retrucou Rafael já sem paciência.

- Você já prestou a atenção que muitas coisas que fazemos por querer ou por obrigação são o contrário do que diz esse seu livro sagrado? E que mesmo assim vivemos e fazemos essas coisas sem reclamar? Que no livro está escrito que quem é pobre nessa vida será rico no paraíso? Lá está escrito que ser rico é uma bênção? A pobreza, então, seria um castigo? E a justiça do céu, como fica? Bombardeou Ivan.

- Acho que já vou embora. Outra hora a gente conversa. Incomodou-se Rafael.

Na verdade ele queria se livrar daquelas perguntas desestabilizadoras e voltar a folhear seu livro sagrado em paz e na segurança de sua crença. Mas eis que se aproximava um ônibus e os dois se levantaram do banco de cimento ainda quente e foram esperá-lo. Todavia, depois de tanta espera o ônibus que surgiu era o de Ivan. Mesmo tendo feito todas aquelas perguntas profanas a sorte lhe sorriu primeiro. Rafael ficou em pé na parada, sozinho.

- Que respostas poderiam ser dadas àquelas perguntas insólitas? O que pretendia aquele incrédulo com seus questionamentos? Eu tenho tanta convicção na minha crença que chego a ficar transtornado quando encontro alguém assim, que põe em dúvida os meus valores, as coisas em que creio. O que queria ele? Me envenenar contra os ricos, contra os patrões? Será que ele quer destruir esse mundo? O que poríamos no lugar dessa sociedade? Seria o fim de tudo? Esses estudantes, sempre querendo mudar as coisas, o mundo. Por que não se contentam com o que têm? A harmonia é que faz as coisas funcionarem bem. A discórdia gera incertezas e bom mesmo é o cotidiano salutar desse mundo. Eu gosto desse mundo assim sem modificações abruptas. Finalizou o resignado Rafael.

Em pé e distraído pelos pensamentos sobre a sua crença não percebeu que um carro vinha numa velocidade irresponsável pela avenida de pista dupla e ziguezagueando os veículos. O motorista brincava de se aproximar de alguns carros rapidamente e ficar colado na traseira. Inesperadamente ele arrancava de uma vez ultrapassando com muita proximidade o veículo da frente.

Num determinado momento um dos motoristas que iam à frente num dos carros se assustou ao perceber a manobra arriscada e diminuiu a velocidade o que provocou um leve choque entre os dois veículos, mas o suficiente para desestabilizar o motorista irresponsável que, descontrolado, foi em direção à parada de ônibus. Rafael, distraído, não percebeu claramente o que ocorreu e foi terrível e violentamente atingido de forma rápida e inesperada não tendo tempo de reagir. Com o impacto seu corpo foi arremessado a seis metros de distância.

Depois do impacto no corpo de Rafael o carro se arrastou pela calçada até atingir um poste. Rafael morreu na hora. Seu corpo todo ensanguentado pendia entre a calçada e o asfalto. Seu livro sagrado havia sumido. Henrique estava sozinho e bastante machucado dentro do Porsche. Mesmo com todos os air-bags para proteger-lhe seu sangue escorria pela testa inchada pelo impacto capaz de superar os artefatos de proteção.

As pessoas foram parando seus carros para observar e socorrer os envolvidos nesse previsível acidente. Conseguiram retirar Henrique do seu carrão importado e o colocaram na calçada para aguardar as equipes de socorro. Cerca de dez minutos depois chegaram duas equipes e os paramédicos fizeram o atendimento imediato estimulando os sinais vitais. Foi quando Henrique despertou tossindo e respirando ofegantemente.

Um dos enfermeiros mais próximos sentiu odor forte de álcool emanado da respiração do paciente. Perguntou-lhe sobre seu estado de consciência e se havia ingerido bebida alcoólica. Henrique respondeu, ainda meio confuso, que tinha bebido dois copos de vinho durante um jantar com uns amigos num restaurante perto dali.

Nesse momento um policial se aproximou para averiguar a situação e perguntou aos que atendiam como o paciente estava. Permanecia numa situação estável, respondeu o enfermeiro que acrescentou que além de sinais evidentes de embriaguez o paciente havia confessado ter consumido álcool. O policial comunicou ao comandante da patrulha que estava resguardando o corpo de Rafael junto aos outros policiais até a chegada do carro do IML.

Menos Rafael, todos se encaminharam a delegacia da região para o registro da ocorrência. Relatados os detalhes e apontado o acusado, o delegado definiu o enquadramento e a tipificação criminal que incorreu Henrique comunicando a seu advogado que a fiança fora arbitrada em trezentos mil reais. Meia hora mais tarde o motorista irresponsável entrou no carro do advogado e saiu da delegacia rumo à sua mansão que tinha mais dez carros semelhantes na garagem.

Será de lá que ele aguardará indefinidamente o inquérito ser concluído e enviado à justiça. Será de lá também que ele verá os noticiários de TV sentado em seu grandioso e confortável sofá de couro italiano apontá-lo como um escárnio social para logo em seguida outro irresponsável num carrão substituí-lo como atração para a espetaculosa demonstração de preocupação e desejo de justiça aparentemente impiedoso da TV e da sociedade. Assim, então, sentirá alívio por esquecerem seu caso e voltarem a atenção para o caso mais recente.

Tudo isso acontecendo enquanto os poucos e pobres familiares de Rafael cuidam de seu velório e enterro sozinhos e sem a ajuda dos muitos antes colegas de crenças, pois o inconveniente Rafael tinha de morrer exatamente no dia de uma já previamente anunciada marcha.  

Viveu seus pobres e breves dias na terra submerso em insolúveis problemas e dificuldades econômicas sem ter entendido o por quê. Nunca teve o prazer de usufruir as coisas que vergonhosamente desejava, pois a sua crença religiosa lhe ensinou que o pobre vivo será o rico morto, mas só lá no paraíso. Rafael está mesmo é enterrado num descuidado cemitério vizinho à favela que viveu desde criança.

Outro dia mesmo Henrique foi visto saindo do mesmo restaurante onde tinha terminado de jantar com os mesmos diletantes e sempre presentes amigos. Teria jurado ao manobrista que bebeu, nesse dia, apenas dois copos do mesmo vinho. Entrou no seu novo e reluzente carrão importado e saiu em disparada rumo à sua majestosa mansão. Outra vez. 


2 comentários:

Chico Mário Feitosa disse...

História real com personagens fictícios???
abcs

JAIR FEITOSA disse...

Olá Chico Mário.

Pois é, estava em casa e assisti um pastor na TV falando que no céu tudo seria como descrevi no texto, mas aí essa loucura toda da busca de riqueza pela riqueza, inclusive por parte deles, sem se levar em consideração e observação os valores éticos e morais criados para barrar essa busca desenfreada. Foi a isso que me referi quando bolei essa história aí.

Agora o cara vir aqui dizer que estou culpando o capitalismo pelas coisas ruins deste mundo é muito revelador de sua incapacidade de ler e entender um texto tão simples, como fez um tal de "Anônimo". O analfabetismo é de lascar. Mão Santa, permita citá-lo, disse baseado em Cícero: "A ignorância é audaciosa".

Um abração, Chico.

Jair Feitosa.