Humberlinda, vivida pela comediante Katiuscia Canoro. (Foto da Internet).
Assisti, semana passada, ao “Zorra Total”, programa da Rede
Globo aos sábados à noite, e ao sorrir das piadas parei para tentar levar a
sério, apenas como exercício de divagação, a realidade apresentada por uma das
personagens encenadas ali.
Trata-se de uma assistente social voluntária chamada
Humberlinda, papel de Katiuscia Canoro. Ela trata os pobres que vão em busca de
soluções para seus problemas de forma debochada e escrachada. “Vocês são gente…
quase como que nem a gente”, “É verdade, é verdade sim. Humm”, “Estou aqui para
servir todos os pobres. Eu amo os pobres”, são alguns de seus bordões.
Mas o que quero falar não é sobre o personagem e nem a
discussão em torno do Conselho Federal de Assistentes Sociais com os modos da
Humberlinda, não. Quero divagar em outra direção tentando ver a coisa como se
pudesse ir além do humor.
É verdade que a ironia pode fazer a verdade aparecer. Nesse
caso pode-se dizer que o humor presente na personagem é uma maneira de se alertar
seriamente para o modo debochado como os pobres são tratados por outras classes
sociais e com isso encaminhar uma discussão para a superação do preconceito de
classe. Não excluo essa via, não.
Mas a minha divagação me levou a este ponto: Por que só os
pobres são retratados invariavelmente como motivo de ridicularização, escárnio,
apelação e sacarmos?
Os pobres são sempre os personagens a ser o alvo de outros
personagens ou eles próprios os que se ridicularizam. As escolhas, os modelos
estéticos, os gostos, as preferências são sempre motivo de riso.
Os alunos do 3º ano do IFPI Floriano perceberam recentemente,
ao estudar o tema Ideologia, que os valores estabelecidos como referência são
sempre as escolhas, os modelos estéticos, os gostos, as preferências da classe
social (burguesia) que detém o monopólio dos meios de comunicação e, desse
modo, estabelecê-los como modelo padrão a ser seguido e incorporado pelas
demais classes sociais.
Então, tudo o que não é a referência cultural dela
(burguesia) é ridicularizado, desrespeitado como algo inferior, de mau gosto.
Portanto, motivo de riso.
Nisso tudo, os pobres por negarem os seus valores porque têm
os valores da burguesia como referência do que é bom gosto, começam a ri de si
mesmos.
Em parte isso é bom porque demonstra que quem sabe rir de si
mesmo se permite fazer autocrítica. Mas será que os ricos não são ridículos
também? Não possuem preferências ridículas? Estética ridícula? Gostos
ridículos?
Cadê os personagens que ridicularizam os ricos (como classe
social)? Você conhece algum?
É claro que não. Os ricos não se permitem servir de motivo de
risos porque os seus valores é que devem ser o modelo para todos. E sendo os
donos dos meios de comunicação, então não há a mesma ridicularização que há em
relação aos pobres.
É nesse sentido que vem a crítica ácida dos articulistas dos
meios de comunicação de massa destruindo qualquer pretensão dos trabalhadores
de terem um canal de TV, de Rádio e Jornal que mostrem a si mesmos.
Outra demonstração de que os valores de uma classe se
sobrepõem às demais é o caso indefensável da estética comportamental apontada
na chegada dos médicos cubanos ao Brasil recentemente em Fortaleza.
Médicas e médicos locais fizeram um “corredor polonês” para
receber seus colegas de profissão vindos de Cuba. Vaiaram-nos e disseram
palavras duras. Uma jornalista do Rio Grande do Norte disse que as médicas
cubanas “têm cara de empregada doméstica”. (Clique AQUI).
A burguesia estabeleceu uma estética comportamental para os
médicos, por exemplo, e todo médico que não é identificado com tal estética é
agredido de forma vil. Como se viu no caso acima.
Uso o conceito “estética comportamental” para definir a
maneira de falar, vestir, andar, consumir, divertir, reagir e se comportar de
acordo com o padrão que a classe criou para seus membros.
Então, quem por algum motivo não se enquadra nesse padrão,
como é o caso das médicas cubanas, visto sua cultura social e econômica possuir
outra estética, é ridicularizado de forma depreciativa como se um padrão fosse
o correto e o outro o errado, portanto motivo de escárnio, riso e deboche.
Nietzsche disse, sobre o predomínio dos valores de uma classe
sobre outra que tais “valores são sempre produto de interesses egoístas dos
indivíduos. Os valores estão ligados às condições de existência de certos
grupos, justificam as suas hierarquias e mecanismos de domínio, e mudam sempre
que as condições de existência se alteram”.
Em decorrência, essa luta contra os valores estéticos dos
trabalhadores é uma forma de autoafirmação da burguesia e, também, lógico, da
pequena burguesia.
Assim, sem meios de impor seus valores e sua estética, e sem
consciência de todo esse processo, muitos trabalhadores tentam imitar a
estética comportamental dos ricos e dos membros da classe média fazendo uma
mimetização de seus valores. Mas como o poder econômico dos trabalhadores não
lhes permite consumir os mesmos bens estéticos, então eles buscam os similares.
É aí que aparece o ridículo. A imitação através do uso de elementos
de cultura mal elaborados (os similares chineses, por exemplo) que tornam os
pobres alvos de risos e escárnios. Note-se como são decorados os ambientes de
vivências dos pobres nos programas humorísticos, são uma demonstração do gosto kitsch.
Será que vou viver o suficiente para assistir a programas
humorísticos de TV pertencente aos trabalhadores cujos personagens
ridicularizados, escarniados, depreciados serão os membros da burguesia?
Para finalizar compondo a premissa da sobreposição e
aceitação de valores entre classes sociais, cito o sociólogo José Arthur
Gianotti que disse que “existem muitas formas de moralidade, sendo que cada grupo
social ou profissional tem sua identidade, delineada por normas consentidas. A infração
destas normas gera censura ou mesmo a exclusão daquele grupo determinado.”
É, também, por isso que ricos adoram rir de pobres.
P. S.: O meu colega, professor Luiz Bonfim, sugeriu o nome desse texto e indicou que eu deveria abordar também, a partir dessa ótica, o papel do homossexual nesses mesmos humorísticos. Então, fica para um próximo texto.